Dissociação: Quando a Mente se Desconecta da Realidade para se Proteger
Entenda como o cérebro cria um “escudo emocional” diante do estresse intenso, o que significa se sentir fora do próprio corpo e quando esse mecanismo natural pode se tornar um sinal de sofrimento psicológico.
Em algum momento da vida, quase todos já tiveram a sensação de “desligar por alguns segundos”, ficar com o olhar perdido no nada ou sentir que o mundo à volta parece distante. Esse fenômeno, conhecido como dissociação, é um estado mental no qual a mente se desconecta temporariamente do presente.
Embora possa parecer algo estranho ou preocupante, a dissociação é, na verdade, um mecanismo de defesa natural do cérebro, usado para proteger a pessoa diante de situações de estresse, trauma ou sobrecarga emocional. É como se a mente criasse um “botão de pausa” para lidar com emoções que seriam, naquele momento, difíceis demais de suportar.
Neste artigo, vamos entender o que é a dissociação, como ela funciona, por que está ligada à ansiedade, quando se torna um problema e o que pode ser feito para recuperar o equilíbrio.

O que é a dissociação?
A dissociação é um estado de desconexão entre pensamentos, emoções, memórias e identidade. Em termos simples, é quando uma parte da mente se “desliga” para evitar o sofrimento psicológico.
Durante um episódio de dissociação, a pessoa pode:
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sentir-se ausente, como se estivesse “fora do ar”;
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olhar para o nada, sem perceber o que acontece ao redor;
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ter a sensação de observar a própria vida de fora, como se fosse um espectador;
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experimentar lapsos de memória ou perda de noção do tempo;
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sentir-se desconectada do próprio corpo ou das próprias emoções.
Esses episódios podem durar de segundos a horas, dependendo da intensidade emocional envolvida.
A dissociação pode ocorrer em diferentes graus desde formas leves, como “viajar na maionese”, até quadros mais graves, como transtornos dissociativos.
O cérebro e o “modo de proteção”

Para compreender a dissociação, é preciso entender que o cérebro humano é programado para sobreviver. Quando enfrentamos uma ameaça — seja física ou emocional —, o sistema nervoso entra em modo de defesa.
Normalmente, reagimos de três formas:
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Lutar (enfrentar o perigo),
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Fugir (evitar o perigo), ou
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Congelar (ficar paralisado diante do medo).
A dissociação se enquadra nessa terceira resposta. Quando a mente percebe que não consegue lutar nem fugir, ela “desconecta” a consciência da dor, criando uma sensação de desligamento. É como se o cérebro dissesse:
“Isso é demais para lidar agora. Vou proteger você, afastando sua mente do que está acontecendo.”
Essa reação é particularmente comum em situações de trauma, como acidentes, violência, abusos ou perdas emocionais intensas. É uma forma de a mente preservar sua integridade quando a realidade se torna insuportável.
Dissociação e ansiedade: o escudo invisível

A dissociação está fortemente ligada à ansiedade. Pessoas com altos níveis de ansiedade podem experimentar episódios dissociativos com mais frequência, especialmente durante crises ou períodos de tensão extrema.
A mente, sobrecarregada por pensamentos acelerados e emoções intensas, tenta criar um refúgio mental. É como se a pessoa ainda estivesse ali fisicamente, mas parte dela se desligasse para “respirar” emocionalmente.
Sintomas comuns da dissociação relacionada à ansiedade incluem:
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sentir que o tempo passa mais rápido ou mais devagar;
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esquecer trechos de uma conversa ou tarefas simples;
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sentir que o corpo é estranho ou distante;
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ter dificuldade para focar e se conectar com o ambiente.
Muitas vezes, quem vivencia isso descreve a sensação como “não estar realmente aqui”, um tipo de anestesia emocional que alivia temporariamente o sofrimento, mas também causa desconforto e confusão.
A distorção da percepção: tempo, espaço e identidade

Durante a dissociação, o cérebro altera a forma como percebemos o mundo e a nós mesmos. Esse fenômeno pode afetar:
1. A percepção do tempo
O tempo pode parecer acelerado ou lento demais. A pessoa pode se surpreender ao perceber que “perdeu” minutos ou horas, como se tivesse apagado momentaneamente.
2. A percepção do corpo
Alguns relatam a sensação de estar flutuando fora do corpo, como se observassem a si mesmos de longe — um sintoma chamado de despersonalização.
3. A percepção da realidade
O mundo pode parecer irreal, embaçado ou distante, uma experiência conhecida como desrealização.
4. A memória
Em alguns casos, pode haver lacunas de memória, especialmente relacionadas a momentos de forte estresse ou trauma. Isso ocorre porque, durante a dissociação, o cérebro “desliga” certas áreas responsáveis por registrar lembranças.
As diferentes formas de dissociação
A dissociação pode aparecer de maneiras variadas, dependendo da causa e da intensidade. Os principais tipos incluem:
Dissociação leve (comum e passageira)
É a mais frequente e geralmente inofensiva. Acontece quando a mente “desliga” momentaneamente, como quando estamos entediados, cansados ou distraídos.
Exemplos:
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viajar nos pensamentos durante uma reunião;
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dirigir e não lembrar do trajeto;
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se perder em devaneios durante uma música.
Despersonalização e desrealização
Aqui, a pessoa sente que não é ela mesma ou que o mundo ao redor é irreal. É comum em quem enfrenta ansiedade crônica, ataques de pânico ou trauma emocional.
Amnésia dissociativa
A pessoa bloqueia memórias dolorosas, geralmente ligadas a traumas. O cérebro literalmente “esconde” lembranças para evitar o sofrimento.
Transtorno dissociativo de identidade (TDI)
É o grau mais severo, caracterizado pela presença de duas ou mais identidades que assumem o controle do comportamento. Esse quadro é raro e geralmente está associado a traumas intensos na infância.
Quando a dissociação se torna um problema
Embora seja um mecanismo natural de defesa, a dissociação pode se tornar preocupante quando:
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ocorre com frequência ou intensidade;
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interfere no trabalho, nos relacionamentos ou nas atividades diárias;
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é acompanhada por perda de memória recorrente;
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surge associada a crises de ansiedade, depressão ou trauma não resolvido.
Nesses casos, o cérebro está usando a dissociação como uma fuga constante, o que impede a pessoa de enfrentar e processar as emoções de forma saudável.
É como viver metade do tempo “fora do corpo”, observando a vida passar, mas sem realmente participar dela.
O que a dissociação revela sobre o corpo e a mente
A dissociação é um lembrete poderoso de que o corpo e a mente estão profundamente conectados. Quando o sistema emocional está sobrecarregado, o cérebro encontra maneiras de aliviar a dor — mesmo que isso signifique se afastar temporariamente da realidade.
Em termos fisiológicos, a dissociação está ligada à resposta de estresse do sistema nervoso autônomo. Durante um episódio, há:
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redução da atividade da amígdala, área do cérebro ligada ao medo;
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ativação do nervo vago dorsal, que provoca imobilidade e sensação de entorpecimento;
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liberação de hormônios do estresse, como o cortisol, em níveis desregulados.
Essas reações criam o estado de “entorpecimento emocional” característico da dissociação.
Como lidar com episódios de dissociação
É possível aprender a reconhecer e manejar a dissociação de forma consciente. Algumas estratégias eficazes incluem:
1. Técnicas de aterramento (grounding)
Essas técnicas ajudam a “trazer” a pessoa de volta ao presente. Exemplos:
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tocar objetos e perceber suas texturas;
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focar na respiração;
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descrever mentalmente cinco coisas que vê, quatro que toca, três que ouve, duas que cheira e uma que saboreia.
2. Rotina e autocuidado
Manter uma rotina estável, dormir bem, praticar exercícios leves e se alimentar de forma equilibrada fortalece o equilíbrio emocional.
3. Mindfulness e meditação
Práticas de atenção plena ajudam a reconectar o corpo e a mente, reduzindo o automatismo dissociativo.
4. Evitar o excesso de estímulos
O estresse constante, o uso intenso de telas e a falta de pausas mentais podem intensificar a dissociação. Reduzir o ritmo é essencial.
5. Terapia psicológica
O acompanhamento com um psicólogo especializado é fundamental para compreender a origem da dissociação. Abordagens como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), EMDR (dessensibilização e reprocessamento por movimentos oculares) e terapia somática são eficazes.
O caminho de volta ao presente
Lidar com a dissociação é, em essência, aprender a estar presente novamente. Trata-se de reconectar a mente ao corpo, o pensamento à emoção, e o “eu” à experiência real.
Com o tempo e o tratamento adequado, é possível reduzir significativamente os episódios e fortalecer a capacidade emocional para enfrentar situações desafiadoras sem precisar “sair de si”.
A chave está em compreender que a dissociação não é fraqueza, mas um sinal de que a mente está tentando proteger-se. O objetivo não é eliminá-la, mas entender o que ela quer nos dizer sobre nossas emoções e limites.
Dissociar para sobreviver, reconectar para viver
A dissociação é, ao mesmo tempo, uma defesa e um aviso. Ela protege, mas também mostra que algo dentro de nós precisa de cuidado, atenção e acolhimento.
Aprender a reconhecer esse estado é o primeiro passo para recuperar o equilíbrio emocional. Quando conseguimos transformar o desligamento em compreensão, abrimos espaço para curar as feridas internas e viver com mais presença e consciência.
Em um mundo que exige tanto da mente, a verdadeira coragem pode estar em simplesmente estar aqui, agora — inteiro.





