Por que a mente não desacelera à noite? Novo estudo mostra que o cérebro de quem tem insônia pode estar “preso” no horário diurno
Pesquisas revelam que a hiperatividade mental noturna pode ter origem biológica e afetar a capacidade natural do cérebro de entrar no estado de repouso
Muitas pessoas enfrentam o mesmo dilema todas as noites: o corpo está exausto, as pálpebras pesam, mas a mente simplesmente não para. Pensamentos acelerados, organização mental do dia, preocupações, lembranças aleatórias e até ideias criativas surgem quando tudo o que se deseja é dormir. Popularmente atribuído a “preocupações”, “estresse” ou “ansiedade”, esse fenômeno pode, na verdade, ter uma raiz biológica mais profunda, segundo novas evidências científicas.
Um estudo publicado na Sleep Medicine por pesquisadores da Universidade da Austrália do Sul revela que o cérebro de pessoas com insônia pode estar funcionando em um fuso interno atrasado, como se ainda fosse dia — mesmo quando o ambiente externo indica que é hora de repousar.
Essa descoberta traz uma nova perspectiva sobre o distúrbio, mostrando que a dificuldade para “desligar” a mente não é apenas comportamental, mas envolve mecanismos intracerebrais do relógio biológico.

A ciência por trás da mente que não desacelera

O estudo: Quando o cérebro ignora a noite
Os pesquisadores analisaram como pensamentos, cuidado mental e níveis de alerta variam ao longo do dia em dois grupos: adultos com sono saudável e adultos com insônia crônica. Em um ambiente totalmente controlado, sem interferências externas como luz, ruídos ou horários regulares, ambos os grupos foram monitorados em diferentes fases do dia e da noite.
Principais conclusões do estudo
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Pessoas com sono normal começam um processo natural de desaceleração cognitiva ao cair da noite.
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Em indivíduos com insônia, não há essa queda de atividade mental: o cérebro continua operando em um ritmo semelhante ao período da tarde.
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Esse efeito persiste mesmo em horários em que o organismo deveria iniciar processos fisiológicos associados ao sono, como a liberação de melatonina e a diminuição do estado de alerta.
Essas descobertas sugerem que, em quem sofre de insônia, os sinais internos do corpo não estão alinhados com o relógio circadiano. Ou seja, a mente continua em “modo diurno”, mesmo quando o corpo tenta entrar em “modo noturno”.
O cérebro em “horário errado”: o que isso significa?
O relógio biológico humano regula todas as nossas funções vitais, incluindo alerta, temperatura corporal, fome, liberação hormonal e, claro, o sono. Ele opera em ciclos de aproximadamente 24 horas, guiados pela luz solar e por ritmos internos.
No caso da insônia crônica, parece haver uma descompensação entre:
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o ciclo circadiano, que deveria preparar o corpo para dormir;
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o ciclo cognitivo, que deveria reduzir o fluxo de pensamentos.
Quando esses sistemas ficam dessincronizados, o cérebro recebe sinais mistos — parte dele acredita que ainda é dia, mantendo o estado de vigília ativo.
Consequências do “fuso cerebral atrasado”
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A mente permanece produtiva, ativa e alerta.
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Surge a sensação de “não consigo desligar o pensamento”.
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O corpo sente cansaço, mas o cérebro continua acelerado.
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Problemas como ruminação, ansiedade noturna e prolongamento do tempo para pegar no sono tornam-se comuns.
Essa constatação reforça a ideia de que insônia não é falta de esforço para dormir, mas um problema biológico que impede o cérebro de entrar no ritmo correto.
Por que esse atraso interno acontece?
Cientistas ainda investigam a origem exata dessa diferença, mas algumas hipóteses são fortes:
1. Hipersensibilidade ao estresse
Pessoas com insônia costumam ter níveis mais altos de cortisol à noite — um hormônio que deveria estar baixo no horário de dormir.
2. Alterações na liberação de melatonina
O horário natural de liberação da melatonina pode ser mais tardio em alguns indivíduos, empurrando o relógio biológico para frente.
3. Diferenças nos padrões de atividade cerebral
Exames de neuroimagem mostram que pessoas com insônia mantêm regiões do cérebro associadas à tomada de decisão e ao raciocínio altamente ativas à noite.
4. Ritmos circadianos desregulados
Exposição excessiva à luz artificial, uso de telas, rotina irregular e fatores genéticos podem alterar o ciclo interno.
5. Fatores evolutivos
Há teorias que sugerem que, evolutivamente, algumas pessoas desenvolvem perfis de “vigilância estendida”, como se o cérebro estivesse programado para ficar alerta até mais tarde.
Quando a mente não desliga: como isso se manifesta?
Sintomas comuns relatados por quem vive esse fenômeno
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Pensamentos acelerados antes de dormir
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Revisão mental de tarefas, preocupações e problemas
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Dificuldade de “esvaziar a mente”
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Criatividade aumentada à noite
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Maior atividade imaginativa no período noturno
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Sensação de alerta apesar da sonolência física
Para muitos, o maior problema não é apenas dormir tarde, mas sim não conseguir iniciar o sono mesmo estando exausto, o que gera frustração, estresse e um ciclo vicioso.
Impactos na saúde física e mental
A dificuldade em alinhar cérebro e ciclo circadiano gera uma série de consequências:
1. Cansaço constante
Sem sono reparador, o corpo não passa pelas fases profundas necessárias à recuperação.
2. Dificuldade de concentração
A falta de descanso afeta funções executivas, atenção e velocidade de processamento.
3. Maior risco de ansiedade e depressão
A privação de sono altera neurotransmissores essenciais, como serotonina e dopamina.
4. Prejuízo ao sistema imunológico
O corpo passa menos tempo nas fases de regeneração, aumentando vulnerabilidade a doenças.
5. Alterações metabólicas
Privação de sono está ligada a ganho de peso, desequilíbrio hormonal, inflamação e resistência à insulina.
O que essa descoberta muda no tratamento da insônia?
A pesquisa sugere que pessoas com insônia precisam de métodos que ajudem o cérebro a sincronizar-se com o relógio biológico, e não apenas técnicas de relaxamento ou higiene do sono.
Isso abre portas para novas abordagens, como:
1. Terapias de cronobiologia
Intervenções que ajustam o horário interno de sono e vigília.
2. Exposição luminosa controlada
Uso de luz forte pela manhã e redução total à noite para corrigir atraso circadiano.
3. Reprogramação comportamental noturna
Técnicas de TCC-I (Terapia Cognitivo-Comportamental para Insônia) focadas na redução da ruminação mental.
4. Monitoramento da atividade cerebral
Ferramentas eletrônicas e wearables que ajudam a identificar padrões de alerta e desaceleração.
Conclusão
A descoberta de que o cérebro de quem tem insônia funciona em um ritmo “diurno atrasado” ajuda a desmistificar a ideia de que dificuldade para dormir é apenas falta de controle mental ou emocional.
A ciência mostra que há um componente biológico profundo, que envolve o relógio interno, a atividade cognitiva e o modo como o cérebro regula o estado de alerta.
Entender esse mecanismo abre caminho para tratamentos mais eficazes e personalizados, oferecendo esperança a milhões de pessoas que lutam diariamente para silenciar a mente quando chega a noite.






