O “freio das tagarelas”: a punição cruel das fofoqueiras na Idade Média
Na Europa medieval, mulheres consideradas “faladeiras” ou “fofoqueiras” eram silenciadas à força com o uso da temida “brida da repreensão” — um instrumento de tortura que simbolizava a repressão feminina e o controle social.
Durante a Idade Média, a vida das mulheres era rigidamente controlada por normas religiosas e sociais. Em uma época em que a obediência, o silêncio e a submissão eram vistos como virtudes femininas, qualquer desvio desse padrão podia ser punido severamente.
Uma das punições mais cruéis destinadas às mulheres que ousavam falar demais, criticar o marido ou questionar a autoridade masculina era a “brida da repreensão” — também conhecida como “freio das tagarelas” (scold’s bridle em inglês).
O instrumento era um artefato de ferro frio e pesado, colocado sobre a cabeça da vítima, cobrindo-lhe o rosto e imobilizando a boca. Uma peça interna pressionava a língua, impedindo qualquer tentativa de fala. Em alguns modelos, espinhos afiados eram fixados na parte interna, perfurando a língua caso a mulher tentasse pronunciar uma palavra.
Depois de colocada a brida, a mulher era obrigada a desfilar publicamente pelas ruas, com um cartaz pendurado no pescoço dizendo algo como “fofoqueira”, “mentirosa” ou “má esposa”. A população era incentivada a zombar, gritar e até atirar objetos, transformando a punição em um espetáculo de humilhação.
A “brida da repreensão”: o instrumento do silêncio
A brida da repreensão surgiu entre os séculos XVI e XVII, em países como Inglaterra, Escócia e Alemanha, embora versões semelhantes tenham existido em outras partes da Europa.
Seu formato variava conforme a região, mas geralmente incluía:
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Uma estrutura metálica que envolvia toda a cabeça;
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Tiras ajustáveis para fixação sob o queixo e atrás da nuca;
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Uma placa ou bocal interno, que pressionava a língua e impedia a fala;
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Em alguns casos, ganchos ou espinhos voltados para dentro, tornando o silêncio doloroso.
Esse artefato era visto como uma forma “moralizante” de disciplina um meio de “ensinar as mulheres a ficarem em seu lugar”. Na prática, tratava-se de um método de tortura legitimado por leis locais e práticas religiosas da época.
Além da dor física, o maior castigo era o constrangimento público. Ser levada pelas ruas com o rosto coberto por ferro e o rótulo de “fofoqueira” significava a destruição da reputação — algo devastador em comunidades pequenas e conservadoras.
Quando falar era crime: O controle da voz feminina

Na Idade Média, a voz feminina era vista como uma ameaça. A mulher que falava demais, expressava opinião ou interferia em assuntos considerados masculinos era classificada como “perturbadora da paz” (common scold).
As leis locais — especialmente nas cidades inglesas e escocesas — permitiam que essas mulheres fossem denunciadas por vizinhos ou maridos. O simples ato de questionar o comportamento do marido, reclamar em público ou participar de discussões comunitárias já bastava para ser acusada.
A punição não era apenas uma questão moral, mas um mecanismo de poder. O silêncio forçado servia para reforçar o domínio patriarcal e intimidar outras mulheres.
Como explicou a historiadora britânica Rachel Bennett, em estudos sobre a cultura punitiva medieval:
“O freio das tagarelas não punia apenas o som da voz, mas a própria ideia de que uma mulher pudesse ter algo a dizer.”
A humilhação pública como espetáculo
Naquela época, o castigo não se limitava ao sofrimento da vítima. Ele tinha um caráter performático, pensado para servir de exemplo à sociedade.
A mulher punida com a brida da repreensão era conduzida pelas ruas montada em um burro ou a pé, acompanhada por oficiais e curiosos. Muitas vezes, sineta e tambor eram usados para chamar a atenção das pessoas, aumentando o escárnio.
Durante o percurso, era comum que moradores atirassem frutas podres, lama ou fezes, gritando insultos. Essa teatralização da vergonha pública reforçava a ideia de que a mulher “faladeira” era uma ameaça à ordem moral.
Curiosamente, homens raramente eram punidos por difamação ou fofoca, mesmo quando eram os responsáveis por espalhar boatos ou causar desordem. Isso mostra como o instrumento refletia um machismo institucionalizado, onde a fala masculina era poder, e a feminina, desobediência.
A influência religiosa: Pecado e submissão
A Igreja Católica e mais tarde também correntes protestantes desempenhou papel importante na consolidação dessa visão.
Durante séculos, sermões, textos teológicos e manuais de conduta feminina insistiam que a mulher virtuosa era silenciosa, recatada e obediente. As que “falavam demais” eram comparadas a Eva, a pecadora original que corrompeu Adão com suas palavras.
Em muitos casos, as punições medievais buscavam “corrigir” comportamentos pecaminosos. O silêncio imposto pela brida era apresentado como uma forma de purificação — uma lavagem moral pela dor e pela vergonha.
Esse controle religioso do corpo e da voz feminina deixaria marcas profundas, que persistiriam por séculos na cultura ocidental.
Ecos do passado: O freio das tagarelas como símbolo
Com o passar dos séculos e o avanço das ideias iluministas, as punições públicas e os instrumentos de tortura foram sendo abolidos.
Entretanto, o “freio das tagarelas” não desapareceu da memória. Muitos exemplares foram preservados em museus históricos, como o Museu de Londres, o Museu de Tortura Medieval de Rothenburg (Alemanha) e o Museu da Justiça em Nottingham, servindo hoje como testemunho do machismo institucionalizado da Idade Média.
Nos séculos XIX e XX, estudiosos e movimentos feministas passaram a reinterpretar a brida da repreensão como símbolo de repressão e misoginia — uma lembrança de que o direito à voz sempre foi uma conquista, não uma concessão.
Em exposições e aulas de história, o artefato é frequentemente apresentado como uma metáfora física do que muitas mulheres ainda enfrentam simbolicamente: o silenciamento social, político e emocional.
Da Idade Média à atualidade: Ainda precisamos falar
Embora as bridas tenham desaparecido há séculos, o silenciamento das mulheres continua presente, de formas mais sutis.
Hoje, ele se manifesta quando:
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Mulheres são interrompidas em reuniões (“manterrupted”);
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São ridicularizadas por expressar opiniões políticas;
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São atacadas nas redes sociais por denunciar abusos;
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Têm sua fala deslegitimada por serem “emocionais” ou “histéricas”.
Essas práticas mostram que, mesmo sem correntes de ferro, ainda existem freios simbólicos tentando limitar a voz feminina.
A luta atual pelo direito à expressão — seja na política, na ciência, na arte ou nas redes sociais — é uma forma de romper definitivamente com os grilhões do passado.
Reflexão: O poder da voz
Falar é existir, questionar, resistir. Silenciar alguém — especialmente através da humilhação e da dor — é negar sua humanidade.
Ao olharmos para esses artefatos em museus, não devemos apenas sentir horror pelo que foi feito, mas também reconhecer as formas sutis com que o silêncio ainda é imposto hoje.
Cada vez que uma mulher é calada, ignorada ou desacreditada, ecoa o som metálico da velha brida medieval. E cada vez que ela fala, canta, protesta ou denuncia, uma corrente simbólica se rompe.
Conclusão: Do ferro ao feminismo
A “brida da repreensão” é um dos símbolos mais sombrios da Idade Média, lembrando-nos de como o poder se exercia até sobre a fala das mulheres.
Hoje, ela é exposta atrás de vitrines de museus, não mais como instrumento de castigo, mas como testemunho de resistência. Representa tudo o que foi negado — e tudo o que ainda precisa ser conquistado.
A história das “fofoqueiras” punidas não fala apenas do passado. Fala do presente e do futuro: de um mundo que ainda precisa aprender a ouvir as vozes que tentou calar.






