Uma xícara de café pode atrapalhar os antibióticos?
Como um ingrediente cotidiano pode alterar o funcionamento de medicamentos e o que isso significa para o futuro da terapia antimicrobiana
A cafeína faz parte da rotina de milhões de pessoas ao redor do mundo, presente em cafés, chás, refrigerantes e até em remédios. Um estudo recente, conduzido por cientistas das universidades de Tübingen e Würzburg, na Alemanha, publicado em 22 de julho de 2025 na revista PLOS Biology, trouxe à tona uma descoberta preocupante: a cafeína pode tornar os antibióticos menos eficazes contra a bactéria Escherichia coli (E. coli), dificultando sua absorção pela célula bacteriana.
Este artigo explora a pesquisa em detalhes: os métodos utilizados, os resultados observados, os mecanismos moleculares envolvidos, suas implicações e os limites atuais do estudo para seres humanos. Ao final, refletimos sobre o papel da dieta na interação com os tratamentos médicos e os possíveis cenários futuros.
Como foi conduzido o estudo? Um panorama metodológico
Os pesquisadores executaram uma triagem sistemática avaliando 94 substâncias químicas, entre antibióticos, fármacos prescritos e ingredientes alimentares, como a cafeína, para verificar como elas afetavam a expressão de genes reguladores e proteínas de transporte da E. coli. Essas proteínas de transporte, como os poros e bombas na membrana bacteriana, são responsáveis por controlar o que entra e o que sai da célula um processo fundamental para sua sobrevivência.
Entre os reguladores genéticos investigados, destacaram-se MarA, SoxS e Rob. O estudo revelou que Rob, em particular, controla cerca de um terço de todas as mudanças de transcrição provocadas pelas substâncias testadas.
O estudo mostrou que muitos compostos, mesmo sem ação antimicrobiana direta como a cafeína podem modular sutil, mas sistematicamente, esses reguladores e as proteínas de transporte.
O destaque: Café e Rob a cascata que altera antibióticos
A cafeína ativou o regulador genético Rob, desencadeando uma cascata molecular que culminou em alterações na produção de proteínas transportadoras, especialmente OmpF, uma porina essencial para a entrada de antibióticos como ciprofloxacino e amoxicilina na célula bacteriana.
A redução de OmpF leva a uma menor captação de antibióticos, enfraquecendo seu efeito bactericida — fenômeno descrito como uma interação antagônica.
Em experimentos com “checkerboard assays”, confirmou-se que, na presença de cafeína, são necessárias concentrações maiores de antibióticos para obter o mesmo nível de inibição bacteriana evidenciando o antagonismo causado pela cafeína.
Até quanto isso acontece? O que os dados mostram
A cafeína aumentou a concentração inibitória de 50% (IC₅₀) da amoxicilina em cerca de 40%, sob concentração de 55,5 µg/ml de cafeína.
Manipulações genéticas mostraram que a retirada de genes como micF, ompF ou rob aboliu o antagonismo entre cafeína e os antibióticos, confirmando que esses elementos são essenciais para o efeito observado.
Além disso, o fenômeno foi específico para E. coli: em Salmonella enterica, a cafeína não alterou a eficácia dos antibióticos testados, mesmo que efeitos similares em micF e OmpF fossem observados. Isso sugere que as diferenças nos mecanismos de entrada de antibióticos são determinantes entre espécies.
Testes em uma cepa clínica de E. coli isolada de infecção urinária também mostraram o antagonismo com cafeína, indicando que o mecanismo pode ser consistente em cepas patogênicas além das de laboratório.
Limitações e o que ainda não se sabe
Importante: todos os experimentos foram realizados in vitro, em laboratório, usando concentrações controladas de cafeína em culturas bacterianas. Ainda não se sabe se esses efeitos ocorrem em humanos, em condições reais de tratamento.
Especialistas alertam que não há evidência suficiente para que pacientes em uso de antibióticos modifiquem seu consumo de cafeína sem orientação médica.
A eficácia clínica ainda pode depender de fatores como metabolismo, concentração real de cafeína nos locais de infecção, e a complexidade do microbioma humano.
Por que isso importa? A questão da resistência de “baixo nível”
Embora não se trate de resistência antimicrobiana por mutações, o estudo destaca um tipo de resistência “de baixo nível”, resultante de respostas regulatórias das bactérias ao ambiente químico externo.
Esse fenômeno pode dificultar o sucesso dos tratamentos, ao exigir doses maiores de antibiótico ou aumentar as chances de falhas terapêuticas especialmente em ambientes onde antibióticos e compostos como cafeína estão simultaneamente presentes.
Entender essas interações abre caminho para repensar regimes de tratamento e considerar adaptações do estilo de vida ou da alimentação durante terapias antimicrobianas, mas isso exigirá mais estudos clínicos aprofundados.
Perspectivas futuras: monitoramento, implicações clínicas e pesquisas adicionais
Os pesquisadores planejam explorar:
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Efeitos in vivo: testar se o antagonismo observado em laboratório se verifica durante infecções em modelos animais ou humanos.
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Doses e tempo de exposição relevantes ao consumo humano: qual quantidade de cafeína seria suficiente para causar impacto?
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Extensão a outras bactérias: além da E. coli, será que outras espécies patogênicas também respondem dessa forma?
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Potenciais sinergias ou antagonismos com outros alimentos ou medicamentos.
Em um panorama mais amplo, este estudo ressalta como substâncias corriqueiras podem influenciar tratamentos médicos um campo promissor e sensível, que exige colaboração entre microbiologia, farmacologia e medicina clínica.
Considerações finais
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A cafeína pode reduzir a eficácia de antibióticos contra a E. coli em laboratório, via mecanismo regulado por Rob, que diminui OmpF e impede que os medicamentos entrem na célula.
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Esse efeito ainda não foi comprovado em humanos ou em contextos clínicos, exigindo cautela antes de alterar hábitos como o consumo de café.
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O estudo contribui para a compreensão da resistência bacteriana de baixo nível, baseada em regulação gênica induzida pelo meio ambiente
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Futuros trabalhos podem revelar implicações importantes para orientações médicas, regimes de tratamento, e a relação entre dieta e eficácia terapêutica.