Você Sabia? No Tibete, corpos são deixados em montanhas para serem consumidos por abutres em ritual budista
O ritual funerário tibetano que transforma a morte em parte do ciclo da vida
A cultura tibetana guarda tradições únicas e surpreendentes que muitas vezes desafiam a visão ocidental sobre vida, morte e espiritualidade. Uma das práticas mais emblemáticas e também mais incompreendidas pelo mundo externo é o chamado “enterro no céu” um ritual em que os corpos dos mortos são levados até altas montanhas e oferecidos aos abutres. Muito além de uma prática funerária, trata-se de um profundo ato espiritual, enraizado no budismo tibetano, na geografia inóspita do Himalaia e em uma cosmovisão que encara a morte não como um fim, mas como uma transformação.
Neste artigo, vamos explorar em detalhes a origem, os significados, as etapas e as implicações do enterro celestial, além de compará-lo com outros rituais funerários pelo mundo, refletir sobre sua importância cultural e religiosa, e analisar como ele sobrevive em um mundo cada vez mais globalizado.
O que é o Enterro no Céu?
O enterro no céu, também conhecido como jhator (que significa “doação de corpo”), é uma prática funerária tradicional do Tibete, praticada especialmente pelas comunidades budistas vajrayana. Em vez de sepultar ou cremar os corpos, os tibetanos realizam um ritual no qual os restos mortais são levados a locais específicos conhecidos como “torres do silêncio” ou montanhas sagradas onde são oferecidos aos abutres.
A ideia central é que o corpo é apenas um invólucro temporário e que, após a morte, ele deve retornar à natureza. Os abutres, animais considerados puros e sagrados dentro dessa tradição, tornam-se agentes dessa devolução. Assim, a carne humana não é desperdiçada, mas sim devolvida ao ciclo da vida.
As Raízes Religiosas do Ritual
O budismo tibetano acredita no samsara, o ciclo interminável de nascimento, morte e renascimento. A morte, nesse contexto, não é um ponto final, mas apenas uma etapa de transição. O corpo, sem a consciência que já partiu, perde sua importância material e pode ser oferecido como ato de compaixão e generosidade.
A simbologia do oferecimento
No jhator, o corpo é considerado uma última dádiva do falecido, que oferece sua carne aos abutres como forma de praticar a generosidade. Esse ato está profundamente ligado ao princípio budista da compaixão por todos os seres vivos, já que até mesmo após a morte, o indivíduo contribui para sustentar a vida de outros.
A Geografia como Determinante
O enterro no céu não é apenas uma escolha religiosa, mas também uma resposta prática ao ambiente tibetano.
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Altitude extrema: O Tibete é conhecido como “o teto do mundo”, com altitudes que ultrapassam 4.000 metros.
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Solo rochoso e congelado: Isso torna o enterro tradicional extremamente difícil, pois cavar covas profundas é quase impossível.
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Escassez de madeira: A cremação, comum em outros países budistas, é inviável devido à falta de combustível vegetal.
Assim, o jhator surgiu como a solução mais prática, mas ao mesmo tempo carregada de espiritualidade, transformando limitações ambientais em uma prática religiosa e cultural de grande significado.
Como é Realizado o Enterro no Céu?
O ritual é minuciosamente estruturado e conduzido por monges e rituais especializados chamados rogyapas, os “carregadores de corpos”.
Etapas principais:
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Preparação do corpo – Após a morte, o corpo é mantido em posição fetal por algumas horas ou dias, enquanto monges realizam orações e recitam o Bardo Thodol (Livro Tibetano dos Mortos).
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Transporte até o local sagrado – O corpo é levado até um campo elevado, geralmente no topo de uma montanha.
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Desmembramento ritual – Os rogyapas cortam o corpo em partes para facilitar que os abutres se alimentem. Em alguns casos, ossos são triturados e misturados com farinha de cevada (tsampa).
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Devorado pelos abutres – As aves, consideradas “anjos celestiais”, comem a carne rapidamente, deixando apenas ossos triturados.
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Ornamentos finais – As cinzas ou fragmentos remanescentes podem ser enterrados ou lançados em rios sagrados.
O Papel dos Abutres
Os abutres, frequentemente vistos no Ocidente como animais fúnebres ou impuros, possuem no Tibete uma conotação sagrada. Eles são considerados mensageiros espirituais que transportam a essência do falecido para o céu. Sua presença é fundamental: acredita-se que quando muitos abutres vêm ao ritual, isso é sinal de uma vida bem vivida e de méritos espirituais acumulados pelo falecido.
A Experiência da Comunidade
O enterro no céu não é apenas um ato privado, mas uma experiência coletiva. Muitas famílias acompanham o ritual como forma de despedida, e os monges conduzem cânticos e rezas para ajudar a alma do morto na travessia do bardo, o estado intermediário entre a morte e o renascimento.
Para os tibetanos, ver o corpo de um ente querido oferecido aos abutres não causa repulsa, mas é visto como um gesto de libertação. Essa naturalidade diante da morte contrasta com a visão ocidental, em que a exposição do corpo seria considerada macabra.
Comparação com Outros Rituais Funerários
A morte é universal, mas os rituais variam de cultura para cultura. O jhator pode ser comparado a:
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Crematórios hindus: onde corpos são queimados em piras ao longo do rio Ganges.
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Múmias egípcias: preservação do corpo como morada eterna para a alma.
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Torres do silêncio zoroastristas: onde também se expunham corpos para serem devorados por aves.
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Sepultamento cristão: que enfatiza a espera pela ressurreição em um corpo preservado.
Cada um desses rituais reflete visões distintas sobre corpo, alma e vida após a morte.
Críticas e Polêmicas
Com a modernização e a chegada do turismo ao Tibete, o enterro no céu passou a despertar tanto curiosidade quanto polêmica:
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Turismo desrespeitoso: Alguns visitantes buscam assistir ao ritual como espetáculo, gerando debates éticos.
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Questões ambientais: A diminuição populacional de abutres devido ao uso de medicamentos veterinários (como o diclofenaco, que é tóxico para aves) ameaça a continuidade do ritual.
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Influência da China: A pressão política e cultural no Tibete também impacta a preservação dessa prática.
O Enterro no Céu e a Filosofia da Impermanência
Um dos ensinamentos centrais do budismo é a impermanência: tudo que nasce, um dia morre; tudo que existe, um dia se transforma. O enterro celestial é a materialização desse princípio. O corpo, antes visto como identidade da pessoa, se dissolve em pó e carne que alimenta outras vidas, mostrando que nada é fixo e que tudo faz parte de um ciclo contínuo.
Reflexões Ocidentais sobre o Ritual
Para o olhar ocidental, o enterro no céu pode parecer chocante, grotesco ou até mesmo desumano. No entanto, ao analisarmos sua lógica espiritual e ecológica, percebemos que ele:
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Reduz o impacto ambiental (não há consumo excessivo de madeira ou espaço de cemitério).
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Valoriza a generosidade até o fim da vida.
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Traz um olhar sereno e natural sobre a morte.
O Futuro do Enterro no Céu
Apesar das pressões externas e das mudanças sociais, o jhator continua sendo praticado em várias comunidades tibetanas. Muitos estudiosos acreditam que sua preservação é essencial não apenas como prática religiosa, mas como patrimônio cultural da humanidade.
Com a crescente preocupação ambiental no mundo, talvez a lógica tibetana de um enterro sustentável e natural encontre novos significados além das montanhas do Himalaia.
Conclusão
O enterro no céu no Tibete é muito mais do que um ritual exótico. Ele é a expressão de uma cosmovisão que enxerga a morte como parte do fluxo natural da vida, onde o corpo não é posse, mas presente.
Ao compreender essa tradição, aprendemos que o medo da morte pode ser substituído por uma aceitação mais serena e até mesmo generosa, em que cada existência, no fim, continua alimentando a vida.